Nascer com deficiência auditiva poderia ser um empecilho para você cursar uma faculdade? O que numa pensada rápida soa como impossível foi longe de um impeditivo para Matheus Davi Gatto, de 26 anos. Estudante do curso de Direito da Ulbra Canoas, nesta terça-feira, 26, diante de uma plateia de professores, colegas e amigos, o jovem defendeu a banca de trabalho de conclusão. A monografia sobre a tributação de impostos para pessoas com deficiência auditiva foi traduzida por intérpretes de Língua Brasileira de Sinais (Libras), que o acompanharam ao longo de cinco anos nas aulas, em atividades extracurriculares e durante toda a orientação para a elaboração do TCC.
"Desde muito jovem eu já lia legislações, sempre soube que queria atuar nessa área", contou o acadêmico. A mãe, Inajara Patrícia Gatto, lembra que aos 4 anos de idade o filho já gostava de vestir gravatas e simular o trabalho de advogados. "Sempre acreditei que estudar é a única porta que temos para o mundo, por isso, mesmo com a surdez, estimulei que ele pudesse buscar os seus mecanismos para conquistar o que sonhasse", contou Inajara, emocionada em formar na graduação o primeiro dos quatro filhos.
O apoio dos familiares foi essencial para que o formando não só conseguisse custear os estudos, como buscasse motivação nos momentos em que pensou em desistir. "Em algumas fases me questionava se conseguiria concluir", admite. E foi o exemplo vindo de dentro de casa, da história de vida da própria mãe, que colaborou para que o jovem persistisse. Aos 11 anos, abandonada pela família, Inajara foi acolhida pela antiga Febem, interrompendo os estudos na quarta série. Sempre rodeada de livros e revistas e com o sonho de ser professora, cursou supletivo, um curso técnico, se formou em Administração na Ulbra Guaíba e hoje já possui no currículo duas pós-graduações. "Sempre contei a minha história para ele e me mantive próxima, deixando o Matheus livre para que pudesse crescer, apesar da deficiência", ensinou.
Programa garante acessibilidade
Foi também na Universidade que o acadêmico conta ter encontrado todo o suporte necessário para que conseguisse concluir a graduação. O apoio da Ulbra veio do Programa Permanente de Acessibilidade (PPA), que há 20 anos é responsável pelo apoio pedagógico aos alunos, professores e colaboradores com deficiências. "Promovemos a comunicação intermediada por tradutores e intérpretes, além de auxiliar nos aspectos operacionais das atividades educacionais", explicou a coordenadora do PPA, Dalva Santana. Somente no ano passado, 27 alunos surdos ou cegos foram acompanhados pelo Programa em sala de aula, através do trabalho dos intérpretes de Libras ou ledores (que fazem a leitura e interpretação dos materiais para os deficientes visuais).
Em 2017, o PPA atendeu 51 disciplinas com alunos com deficiência em sala de aula e realizou 238 atendimentos administrativos para este público. Um dos intérpretes que acompanhou Gatto nos últimos dois anos de formação foi o estudante de Pedagogia, Ângelo Collioni. "O esforço é todo do Matheus. Ele sempre foi muito participativo nas aulas e eu fui apenas um instrumento para a transmissão da linguagem", comentou. A felicidade também estava estampada no rosto da intérprete de Libras e egressa da Ulbra, Natasha Figueiró, que acompanhou o estudante desde 2014 nas atividades acadêmicas. "Estou feliz por ter participado desse momento da vida dele", completou.
Orientadora aprendeu Libras
Além do acompanhamento de no mínimo dois intérpretes por aula, durante todo o estágio do curso e nas orientações para o trabalho de conclusão, Gatto contou com a atenção dos professores ao longo da formação. A orientadora do jovem, Giulia Jaeger Englert, conta que conheceu o estudante na disciplina de Direito Tributário. "Ele sempre foi muito participativo e eu ficava preocupada em saber se ele estava absorvendo bem o conhecimento", lembra. O apoio ao orientando foi tamanho que, quando soube que acompanharia o aluno no trabalho de conclusão, a docente fez um curso básico de Libras.
Na noite desta terça-feira, na abertura da banca, Giulia fez uma surpresa para o acadêmico, ao realizar a apresentação do trabalho em Libras. "Esses cinco anos foram de muitos desafios para o Matheus. Ele foi alfabetizado em Libras e tinha dificuldades para entender português e desenvolver a ortografia, mesmo assim, conseguiu vencer. Escolheu para o trabalho de conclusão uma das matérias mais difíceis do Direito e um tema da área que os colegas costumam fugir, mas foi persistente. É motivo de orgulho", conclui a professora. Passada a aprovação na banca, com grau 8,5, o formando, já mais aliviado, seguia fazendo planos. "Agora vou focar na prova da OAB, quero fazer uma especialização e estudar muito para ser juiz. Quem sabe, o primeiro juiz surdo do País", planeja. Se depender da sua força de vontade, ninguém duvida.
Marla Cardoso
Jornalista Mtb 13.219