Gente da Ulbra
História de amor e perseverança: a ex-cozinheira que virou farmacêutica
Mari Lucia Viegas colou grau no dia 11 de janeiro na Ulbra
O sábado, 11 de janeiro, representou a conclusão de uma etapa marcada por adversidades, mas que teve a resistência característica da força feminina e um desfecho feliz para Mari Lucia Viegas, de 38 anos. Mãe de dois filhos, ela superou um relacionamento conturbado, jornadas de trabalho exaustivas, doenças e outras barreiras em busca do sonho de se tornar farmacêutica. A trajetória da formanda, que colou grau no curso de Farmácia da Ulbra, comprova que tudo é possível quando se tem um sonho.
Segunda de cinco filhos, Mari Lucia Viegas nasceu e morou quase a vida toda em Nova Santa Rita, cidade vizinha de Canoas, onde residiu em um dos períodos mais conturbados da sua infância, quando seu pai abriu uma fruteira, no bairro Mathias Velho, entre 1992 e 1994. O negócio, que acabou não vingando, é um ponto chave da história de Mari Lucia, onde ela teve que se deparar com as primeiras frustrações de uma vida de desafios.
Após o curto período em Canoas, a família retornou para Nova Santa Rita, onde, em 1995, seu pai arrendou terras e começou a plantar. Essa fase foi considerada "muito difícil" por ela. Segundo a formanda, chegaram a não ter água e a passar fome. Para irem à escola, ela e seus irmãos caminhavam cerca de 2km, passando por cercas de arame farpado quando, finalmente, pegavam o ônibus que os levava até o colégio.
Estudos interrompidos
Em 1998, quando estava no 3º ano do ensino médio, ela conheceu o seu primeiro marido, com quem teve um filho, Matheus Henrique. Nessa altura, Mari Lucia já havia trabalhado como balconista, doméstica e babá. Além de deixar o trabalho, ela abandonou os estudos, não concluindo o ensino médio. De acordo com seus relatos, foi um relacionamento difícil, pois o marido não permitia que ela estudasse e trabalhasse.
Aos 20 anos, a jovem mãe passou a fazer doces e salgados para vender por encomenda. Quatro anos depois, quando o filho estava entrando para a escola, montou uma padaria, que acabou não dando certo. Após isso, passou a ter mais contatos com a comunidade escolar e viu a oportunidade de começar a vender lanches no local. "Inicialmente, eu vendia para os professores, depois passei a vender para os trabalhadores de uma obra de ampliação do colégio e, por fim, para os alunos", lembrou. "Eu andava de sol a sol, com carrinho de feira, vendendo os lanches".
Volta difícil ao mercado de trabalho
Após vários anos como autônoma, em 2010, Mari Lucia foi em busca de um trabalho com carteira assinada. "Aos 29 anos, sem experiências comprovadas, quem ia me dar emprego?". Pensando nisso, ela preferiu realizar um concurso da Prefeitura Municipal de Nova Santa Rita, que havia aberto um edital naquele período. Por não ter o ensino médio completo, ela só pôde se candidatar para a vaga de servente.
Ao mesmo tempo, ela fez uma entrevista de emprego em um restaurante do centro de Canoas. "O dono disse que, naquele momento, ele não tinha uma vaga para mim, pois eu era confeiteira e a vaga era para auxiliar de cozinha. Mas eu expliquei a minha situação e disse que aceitaria uma vaga até para limpar o chão, se necessário. Depois de 15 dias, comecei a trabalhar lá", recorda.
Para o concurso da prefeitura, Mari Lucia sequer tinha o dinheiro para comprar a apostila para estudar. "Uma amiga, que também faria a prova, acabou me emprestando". Depois de 11 anos sem estudar, ela teve que conciliar o trabalho fazendo salgados, o emprego no restaurante, as tarefas de casa, a rotina de mãe e também os estudos.
No restaurante, em apenas sete dias de trabalho como auxiliar, Mari Lucia recebeu a oportunidade de ser cozinheira. "Ele assinou a minha carteira e eu sou muito grata por tudo. Foi um momento muito bom da minha vida, onde eu aprendi bastante coisa. Cultivo uma amizade com o pessoal do restaurante até hoje".
Divórcio e a volta por cima
Passando por um período conturbado na vida pessoal, Mari Lucia enxergava no concurso uma chance de estabilidade e mais segurança para se separar do marido. "Em abril de 2011, eu finalmente fui chamada para assumir a minha vaga de servente, na Secretaria da Fazenda da cidade". Ela permaneceu no cargo até novembro de 2019, quando pediu exoneração.
Com o novo emprego e mais estável, Mari Lucia colocou fim ao casamento de 13 anos, em junho de 2011, e também conheceu o seu atual companheiro, Altemir Pereira Sarmento, 49. "Ele acompanhou todo o processo de divórcio e, em janeiro de 2012, começamos a namorar. Com a separação, ela passou a ter mais responsabilidades financeiras. "Tive que pagar aluguel, arcar com todas as despesas com meu filho, já que tínhamos uma guarda compartilhada". Foi bem difícil, pois eu ganhava só um salário mínimo e precisava complementar a minha renda fazendo salgadinhos e trabalhando no restaurante para fazer um dinheiro extra", lembra.
No final de 2012, a locadora do imóvel em que Mari Lucia morava pediu para reaver a casa. "Foi quando o meu namorado, agora marido, me propôs ir morar na casa dele, e então nós juntamos as escovas de dentes", contou rindo. Eles permanecem na casa até hoje, juntamente com o filho do casal, Miguel, de 3 anos, que Mari Lucia teve durante o período da graduação.
Câncer e a luta para concluir o ensino médio
As adversidades não pararam por aí. Mari Lucia queria concluir o ensino médio e faria isso por meio do Enem, mas acabou tendo que adiar os planos quando descobriu um câncer no colo do útero. "Em setembro de 2012, eu precisei passar por um procedimento cirúrgico e não consegui realizar a prova".
Mas com a mudança para a casa do atual marido, ela passou a vislumbrar a oportunidade de voltar a estudar. "Como eu tinha a preocupação de não deixar meu filho sozinho em casa, tudo melhorou quando me mudei, pois tinha meu marido e meu sogro para ficar com ele no período da noite". Ela não hesitou, se matriculou na mesma escola que havia deixado há 15 anos. "Decidi enfrentar todo o ano letivo. Meu marido me deu total apoio, foi comigo até a escola para que eu fizesse a matrícula".
No meio do ano, Mari Lucia já sentia que o objetivo principal estava muito próximo de ser alcançado. "Eu sempre fui uma aluna regular, que não tirava notas ruins, e não encontrei grandes dificuldades para voltar a estudar. Apesar de destoar da idade dos meus colegas, eu segui em frente", contou.
Desempenho no Enem e conquista da bolsa pelo ProUni
Pelo bom desempenho, ela viu que poderia fazer mais do que só concluir o ensino médio e buscar uma formação superior. No período de inscrições para o Enem, em 2013, ela decidiu arriscar: "percebi que era o momento de tentar uma vaga, pois as oportunidades estavam aparecendo". A prova veio, a nota surpreendeu a própria estudante, que diz não ter tido uma preparação especial para a avaliação. "Foi muito bom, não esperava o resultado, mas ali eu vi que poderia almejar coisas maiores", observou.
Ciente da sua nota, ela precisava partir para o próximo passo: escolher o curso. Ela confessa, "não tinha ideia ainda do que gostaria de fazer". Por trabalhar com alimentos por muito tempo, viu a Nutrição como uma possibilidade, mas não descartou outras hipóteses. Analisando as opções mais viáveis e as características de cada profissão, ela optou por Farmácia e Pedagogia. Assim, ela ingressou como bolsista no curso de Farmácia da Ulbra.
Familiares e amigos foram fundamentais
Mari Lucia destaca que, durante a graduação, teve ajuda constante no período em que precisava estudar. "Meu marido é conhecido de todos os meus colegas. Ele me levava e acompanhava em várias ações do curso, visitas técnicas e até mesmo nas aulas. Como tive meu segundo filho, Miguel, durante a graduação, ele ficava cuidando na coordenação e levava até mim no intervalo, para que eu pudesse amamentar". Outra peça fundamental foi a mãe de Mari Lucia, que "praticamente se mudou" para a residência do casal. "Nesse primeiro ano, após o nascimento do bebê, ela me ajudou a cuidar. Isso me permitiu seguir com os estudos", apontou.
Para conseguir manter o ritmo das aulas e não se ausentar dos cuidados maternos, Mari Lucia utilizou todas as licenças que lhe eram de direito. Após isso, solicitou afastamento não-remunerado de dois anos do serviço público. "Foi necessário. Eu não ia conseguir conciliar 8 horas de trabalho, a atenção que um bebê pequeno precisa receber e os meus estudos". A partir daí, ela se dedicou exclusivamente ao filho e à universidade.
Ainda assim, a vida parecia não cansar de impor barreiras no caminho do sonho de Mari Lucia. Com 10 meses de vida, Miguel teve meningite bacteriana, fato que fez com que ela tivesse que perder diversas aulas naquele semestre. "Foi uma situação bem grave, onde a gente temeu muito pela vida dele. Tive que ficar internada com ele e contar com a compreensão dos professores em relação às faltas, que eram justificadas e alguns trabalhos que ficaram pendentes, mas eu consegui recuperar tudo e não reprovei em nenhuma disciplina".
Descobertas no curso e o futuro profissional
Sobre a graduação, a formanda garante que se descobriu na Farmácia. "Na primeira aula, de Introdução às Ciências Farmacêuticas, eu já vi que queria ser farmacêutica. Me encantei com tudo, principalmente quando vi que há a possibilidade de trabalhar na área de alimentos. O auge, para mim, foi poder participar das visitas técnicas às indústrias alimentícias".
Agora já formada, ela aposta que o segredo é não parar. "Sonhar é sempre válido, mas não basta só isso, é preciso correr atrás. Não posso ficar parada esperando as coisas caírem do céu. É verdade que eu tive muitas pessoas que me incentivaram e me ajudaram, mas também é verdade que eu tive que ter muita força de vontade, trabalho e estudo", concluiu. Passado tudo isso, Mari diz que vai começar a procurar emprego e pretendo seguir na área. "Eu gosto do contato com o público, então é algo que eu vou buscar na minha carreira", garantiu. Se depender da força de vontade de Mari Lucia, não há dúvidas que a próxima meta será alcançada.
Leonardo Magnus
Jornalista Mtb 19305/RS
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